Santa Maria, rogai por nós
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Catedral de Santa Maria, em foto do saudoso colega Pedro Farias da Cunha |
O Janeiro em que o Brasil me perdeu
Marcelo Canellas (*)
Eu
hoje tenho 20 anos e quero me divertir. Meus pais estão dormindo em
casa e amanhã haveria um churrasco. Eu tenho a vida pela frente e quero
mudar o mundo. Mas também quero namorar, dançar, rir, andar a esmo com
amigos nas lombas íngremes da minha cidade. Eu sou feito da bafagem
úmida da Serra Geral, dos morros que circundam a Boca do Monte, do eco
metálico dos trilhos de outrora, da lembrança ancestral da Gare onde
meus avós trabalhavam. Ainda que eu não tenha nascido aqui, eu tenho o
viço púbere do futuro. Eu posso ter vindo das barrancas de Uruguaiana,
das campinas de São Borja, das grotas de Santiago do Boqueirão, das
videiras de Jaguari, de São Pedro do Sul, São Sepé, São Gabriel, Dom
Pedrito, de cima da serra, não importa. Santa Maria sou eu, cidade
cadinho, generosa e aldeã, que nos pariu a todos em seu útero colossal.
Eu
sinto o afago do vento norte, eu vejo anciãs tomando mate na janela e
cadeiras nas calçadas da Vila Belga em uma tarde quente de janeiro. Eu
tenho o lastro interiorano de minha cidade, mas também as narinas
abertas, os ouvidos atentos, os sentidos despertos para o que enxergo na
face jovem de uma urbe sempre aberta ao novo, cosmopolita e inquieta,
convidando-me para a festa da vida. Por isso celebro, brindo, bailo.
Tenho o frescor do campus em meus modos, a avidez universitária do
saber. Recebo, faceiro e agradecido, convite do conhecimento, as portas
do desconhecido a me cortejar. Como eu não quereria viver? Então entro
numa boate e não tenho mais voz, não tenho mais planos, não tenho saída.
Rogo
a todos os que andaram sobre os paralelepípedos da Rio Branco para me
salvar. Quero correr e suplicar socorro a quem me possa acudir. A
bênção, Carlos Scliar. A bênção, Raul Bopp. A bênção, velho Cezimbra
Jacques, meu Prado Veppo, a bênção Felippe d’Oliveira. Iberê Camargo, tu
que estudaste no Liceu de Artes e Ofícios, ali bem perto de onde a
primeira faísca espocou, a bênção. A bênção, todos os artistas e poetas
da Boca do Monte. Precisamos de vocês para explicar o sentido do
inexplicável. Vocês, que tiveram tempo para luzir, expliquem-nos: por
que temos de findar?
Como posso adormecer,
se mal despertei para o mundo? Como posso abdicar, se não brinquei o
suficiente, não amei o bastante, deixei incompleto o edifício da minha
história? Eu não choro só por mim, e nem meu pranto cai sozinho. Minha
cidade é hoje o Brasil em luto. Minha juventude perdida é o meu país,
perplexo e tonto, impotente a velar meu corpo. Santa Maria, rogai por nós.
(*) Marcelo Canellas é repórter da Rede Globo.
Texto publicado no jornal Zero Hora e no Diário de Santa Maria, terra natal do autor.
Texto publicado no jornal Zero Hora e no Diário de Santa Maria, terra natal do autor.
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